28.11.09

Manifestações Literárias II


Usar a língua espanhola era comum entre os escritores portugueses do século XVI. Mas é singular a produção poética no idioma dos índios Tupi, grupo lingüístico que ocupava quase todo o litoral brasileiro no século XVI. Os jesuítas submeteram esse idioma à disciplina gramatical e ele se tornou, com a designação expressiva da “língua geral”, o principal veículo de comunicação entre colonizadores e indígenas; depois, entre os descendentes dos colonizadores, muitos deles mestiços. A obra de Anchieta e a prática extensiva da língua geral indicam que poderia ter-se desenvolvido no Brasil uma cultura paralela e um bilingüismo equivalente ao que ainda existe no Paraguai (devido também à catequese jesuítica). Essa concorrência alarmou as autoridades metropolitanas, interessadas em usar o seu próprio idioma como instrumento de domínio e homogeneização cultural, a ponto de, no século XVIII, proibirem o uso da língua geral nas regiões onde ela predominava.
Isto é dito para destacar uma das funções da literatura culta no Brasil Colonial; impor a língua portuguesa e registrá-la em escritos que ficassem como marcos, ressaltando a sua dignidade de idioma dos senhores,
ao qual todos deveriam submeter-se, como afinal acabou acontecendo.
A não ser o caso das tribos indígenas sobreviventes, e de alguma persistência da língua geral na Amazônia, os idiomas indígenas foram proscritos, assim como os africanos, que vieram com a importação de escravos. Trata-se de um verdadeiro processo de dominação lingüística, aspecto da dominação política, no qual a literatura culta, repito, desempenhou papel importante. Foi pena que a grande percepção de Anchieta não tivesse seguidores, pois ele combinava a tradição clássica, redefinida pelo humanismo do Renascimento, com certos veios mais populares da tradição ibérica, visíveis nos autos teatrais e na escolha das formas métricas de sua lírica. Além disso, acolheu e procurou dar dignidade à própria expressão lingüística do indígena, mostrando que seria possível uma cultura menos senhorial, mais aberta aos grupos dominados.
Portanto, o que aqui predominou e deu a tônica foi uma literatura de senhores, que transpôs o requinte da literatura metropolitana e nem sempre foi capaz de sentir a complexidade da sociedade nova. Mas é preciso não encará-la com espírito de compêndio ou manual, isto é, como se as listas de nomes, obras e temas, postos em sucessão no espaço da página, significassem a existência de uma verdadeira vida literária, que só ocorrerá a partir do século XVIII, quando se esboça uma “República das Letras”. Nos séculos XVI e XVII o que havia eram autores ocasionais, ou circunscritos à sua região, produzindo obras que na maioria absoluta não foram impressas, inclusive porque o Brasil só teve licença para possuir tipografias depois de 1808. Algumas dessas produções foram editadas em Portugal, mas outras de grande importância conheceram apenas a difusão oral ou manuscrita, atingindo círculos restritos e só no século XIX chegaram ao livro.
Isolados, separados por centenas e milhares de quilômetros uns dos outros, esses escritores dispersos pelos raros núcleos de povoamento podem ser comparados a vaga-lumes numa noite densa. Podia haver lugares, como a Bahia, onde se reuniam homens cultos, sobretudo clérigos e legistas. Podia haver sermões brilhantes que encantavam o auditório, ou poetas de mérito recitando e passando cópias de seus poemas.
No conjunto, eram manifestações literárias que ainda não correspondiam a uma etapa plenamente configurada da literatura, pois os pontos de referência eram externos, estavam na Metrópole, onde os homens de letras faziam os seus estudos superiores e de onde recebiam prontos os instrumentos de trabalho mental.
Texto de Antonio Cândido

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