1.7.09

Esmeraldo Siqueira


Memórias de um ex-aluno
(Cláudio Galvão*)
Era o ano de 1954 e o Atheneu instalava-se na Avenida Campos Sales, ficando o centenário e histórico prédio da Avenida Junqueira Aires entregue a mãos impiedosas para sofrer logo após uma criminosa e desnecessária demolição.
Prédio novo, carteiras novas, professores antigos. Ainda alcancei nomes emblemáticos do ensino, como Antônio Pinto de Medeiros, Floriano Cavalcanti de Albuquerque, Raul de França, Albimar Borges, Nevinha (de Geografia), Sebastião Monte, Protásio Melo e Esmeraldo Siqueira.
Minha turma era muito bagunceira nos intervalos, mas até "bem comportada" em aula, embora nela estivesse Tota Zerôncio, o tipo mais gaiato que conheci até hoje. As aulas em geral transcorriam sem alterações, até mesmo as de francês, que abordavam a literatura daquele país, algo tão desconhecido de nós pobres iletrados estudantes.
As aulas do Professor Esmeraldo Siqueira eram ouvidas com o maior respeito e atenção. Naquele tempo aulas eram para ser ouvidas apenas, não havia isto de pesquisa, trabalho de grupo e outras modernidades.
Esmeraldo falava de um tema que podia ser o mais chato do mundo: a literatura francesa. Mas ele conseguia tornar o assunto agradável ao abordar detalhes curiosos e muitas vezes escabrosos da vida dos autores e gente daquele tempo. Fatos e mais fatos, nomes de poetas e escritores ainda estão na minha memória, graças ao seu cuidado e recomendações para a correta pronúncia de cada nome.
Provas, correções, 2ª época, reprovações? Nunca houve. Para que? - devia perguntar, se o que fazia era plantar sementes. Sem isso não teria eu ido à biblioteca que ficava no primeiro
andar, para ler Georges Sand.
Ingressando no magistério, volto ao Atheneu como professor e, em 1962, fui vice-diretor da turma matutino: era "chefe" dos professores, entre eles, de Esmeraldo Siqueira. Todos o consideravam irritável e rebelde. Comigo nunca o foi pois sempre o considerei e respeitei.
No mesmo ano de 1962 fui admitido como professor da Faculdade de Filosofia que, antes de passar para a UFRN, funcionava na Praça Pedro Velho, atual Colégio Anísio Teixeira. Eis-me novamente "colega" de Esmeraldo Siqueira.
Ali, nos momento de folga, aproximava-me do mestre na expectativa de aprender um pouco mais. Foram momentos de muito proveito, quando rememorava fatos e personagens do seu passado. Nunca o vi irritado, mas sempre de bom humor, direcionando sua ironia para seus prováveis adversários.
Guardo na memória expressões, apelidos, comparações e quadrinhas feitas "na hora", quando "premiava" alguém que passava e despertava atenção. Lembro-me que, uma vez, comentou comigo que a nossa diretora o havia desatendido em uma reivindicação de que se julgava merecedor.
Então, desferiu o míssil destruidor: "Ela não sabe com quem mexeu. Vai sair na próxima FAUNA POTIGUAR!" Sorte dela que os poemas caricatos FAUNA POTIGUAR não foram continuados.
A última vez que vi o Professor Esmeraldo Siqueira foi quando de uma visita em sua residência, à Rua Jundiai. Já estava doente e - não nos esqueçamos de que era médico - sabia o que tinha. Foi então que, apontando para as estantes que contornavam sua sala de visitas, disse: "Estou relendo todos os meus livros. Estou me despedindo de minha biblioteca."
Esmeraldo viria a falecer tempos depois - e só aos poucos aquelas frases que guardei foram se abrindo para mim, desvendando o seu profundo conteúdo.
Nunca ouvi falar que alguém se despedisse de uma biblioteca. Nunca senti em ninguém tão grande testemunho de amor pelos livros e, naturalmente, pela cultura que eles continham. Cultura que Esmeraldo Siqueira viveu, amou e divulgou. Cultura que era parte essencial de sua vida, seu mais constante testemunho e, havendo sido sempre professor, seu legado maior, sua mais elevada missão.
(*Historiador e Pesquisador)

2 comentários:

antes que a natureza morra disse...

Ministrei aulas durante quase 45 anos. Embora seja formado e tenha habilitação para mais de uma profissão, nunca as exerci, dedicando-me a vida inteira ao magistério em cursinhos pré-vestibulares, colégios particulares e UFSM, minha grande paixão. Nunca foi pelo dinheiro, pois quem ama dar aula num país como o nosso é movido por paixão ou loucura.
Nunca fui um mero vomitador de conteúdo, isto é, nunca fui um mero professor. Sempre dei contronos universalistas e humanísticos às minhas aulas de Biologia, usando do conteúdo das mesmas para ampliar os horizontes dos alunos através da filosofia, sociologia, antropologia, teologia, ética,etc...Procurei ser mais do que um professor. Fui um EDUCADOR. Na concepção de Paulo Freire, um sujeito que "EDUCA A DOR" dos seus alunos.
Por isso, este feliz artigo que me foi enviado pela Iracema, lá de Goiás, me emocionou. Pelo que ele tem de gratidão ao velho mestre ao qual se refere. Meus parabéns !
Sua gratidão revela seu carater generoso e justo.
Abraço

James Pizarro

Anônimo disse...

Sempre me emociono ao ler artigos ou colunas sobre ele. O carinho, respeito e admiração demonstrados só me 'provam' o quanto ele era um ser humano iluminado. Levarei esse texto pra mostrar ao seu filho, Justiniano. Muito obrigada pelas palavras calorosas e tão sinceras.

Marina de Siqueira